quarta-feira, 2 de setembro de 2009

PROBLEMAS — OS DA VIOLÊNCIA E OS DO HOMEM COM AS SUAS ASPIRAÇÕES (aspectos científicos e dados jurídicos).

PROBLEMAS — OS DA VIOLÊNCIA E OS DO HOMEM COM AS SUAS ASPIRAÇÕES (aspectos científicos e dados jurídicos).

I. Introdução

O tema a explorar são as várias formas de violência e o conjunto das necessidades culturais e econômicas do homem, à luz de uma análise jurídica de cunho científico.[1] Comecemos por dizer que todo enfoque filosófico não será o da filosofia clássica. Será o da filosofia científica. Qual a grande diferença entre as duas posições? É que a filosofia clássica é predominantemente racionalista, isto é, da análise correntia da natureza (através do próprio senso comum), alça-se rapidamente a grandes construções sistemáticas, carregadas de concepção mística e estética. Período típico é o que vai de Sócrates a Hegel. Já a filosofia científica é aquela de missão mais modesta e mais segura. Procura exaurir as descobertas das ciências e delas extrair, por indução, o que os fatos permitem para se traçar com rigor uma teoria descritiva do conhecimento e a interpretação cognoscitivamente exata do mundo. Suas bases são, portanto a matemática, a física, a biologia e a sociologia positiva.

Falaremos das necessidades sócio-econômicas mediante aná­lise do complexo instinto-inteligência, que é o ser humano em degrau da evolução qualitativamente acima dos outros seres vi­vos, embora contenha em si escalas ontológicas do mundo físico e do mundo biológico. Teremos ensejo de ver, rapidamente embora, que no social, isto é, no sociológico, se contém não só o econômico, como também o religioso, o moral, o estético, gnosiológico (ou científico), o jurídico, e o político. Podemos adiantar que, a não ser esporadicamente, o fator econômico não é sequer o fator mais determinante da estrutura social, como iludidamente pensaram Karl Marx e Friedrich Engels. O ser humano é mais complexo. E mais rico. Exige-nos mais detido estudo do que imaginaram os pensadores, ou os homens práticos, que se instalam em ideologias em vez de se abnegarem mais a fundo diante dos dados fáticos que a Ciência colhe, observa, analisa e experimenta.

Falaremos, igualmente, algo sobre as aspirações sócio-econômicas, relacionadas com o todo do ser humano — plasmado que é ele não só por energias físicas, senão também pelo conjunto dos sete prin­cipais processos de adaptação social — pela Religião, pela Mo­ral, pela Arte, pela Ciência, pelo Direito, pela Política e pela Economia. No tocante à dimensão jurídica haveremos de proceder a uma ligeira vista d'olhos sobre o direito e a ação administrativa atual, no Brasil dos dias atuais, voltados para solucionar o problema da violência. Depois, uma pincelada rápida sobre soluções jurídicas mais profundas, como fórmula eficaz e duradoura para se diminuir a vio­lência de qualquer tipo na sociedade moderna.

Os tópicos não podem deixar de ser muitos, em face da complexidade de tema tão denso. Buscaremos apertada síntese. Será material para a meditação de cada leitor: com seriedade e probidade, distante da inclinação ideológica de direita ou de esquerda.

II. O caminho da filosofia científica

Método. O método mais eficaz de se fugir às generalidades retóricas e aos discursos, inflamados, mas improfícuos, do racionalismo (estéril em verdades e fecundo em extremismos ideológicos), é o da obtenção de conhecimento impessoal e exato extraindo-se rigorosamente dos objetos as "essências". Com efeito, a microfísica (Maxwell, Planck, de Broglie) e a mecânica celeste (Minkowsky, Einstein) mostram que vivemos no binômio fundamental de “organismo versus meio”, em troca incessante de energias cambiantes. Se nosso conhecimento se fixa demasiadamente na própria estrutura do eu, acentuamos exageradamente a subjetividade com prejuízo do que, na realidade, se passa fora de nós. O indivíduo (branco ou preto, rico ou pobre, culto ou inculto) excessivamente voltado para as suas conveniências pessoais perde, em grande parte, a noção de importantes energias que o cercam, e erra no conhecimento e erra na atuação social. De outro lado, o que se perde em só analisar as particularidades de uma fatia do mundo objetivo, está dando ênfase exagerada ao objeto particularizado — escapa-se-lhe a idéia do todo, do conjunto, da co-existência das energias físicas, biológicas e sociológicas.

Nós sabemos algo quando descartamos da análise da realidade desse “algo” os ranços da nossa vivência pessoal. É ultrapassando-nos que conseguimos captá-la melhor. O analista é o estudioso que vai além do seu pendor pela violência; por exemplo, que vence o seu pavor do socialismo, ou que excede o seu ressentimento contra o alto capitalismo. Livra-se de cargas sociais subjetivamente acentuadas e adquire assim condições de situar-se mais acertadamente diante da realidade, quase tal qual ela é. Para compreendê-la, explicá-la, e influir nela para melhor, inteligentemente. A inteligência ganha do puramente instintivo, supera-o. O caminho profícuo da filosofia científica é aproximativamente este: sujeitar-se intelectivamente aos fatos para entendê-los na sua pureza máxima possível dentro de estádio atual da civilização.

III. Instinto e inteligência

Filosofia clássica e ciência. Já a filosofia clássica (desde Aristóteles particularmente, cujo pensamento foi bem desenvolvido por Santo Tomás de Aquino e pela escolástica subseqüente), foi a que aventurou a definição formal do homem pelo gênero e pela espécie ("per genus et differentias"): "ani­mal rationale" — o homem é um animal racional; ora, José da Silva é homem logo, José da Silva é um animal racional. Muitos têm lembrança disto buscada lá nos bancos escolares.

A ciência enriqueceu e corrigiu a visão superficial dos clássicos, que não contavam com os instrumentos da pesquisa física, biológica, psicanalítica e, hoje, parapsicológica. Hoje, instinto-inteligência é realidade que opulenta, por dentro e para fora, com precisões de dados quantitativos e qualitativos, a definição clás­sica de homem.[2]

Sabemos hoje um pouco mais. E resta muito por saber. "The­re are more things", como diria Shakespeare. Mas só podemos falar do que sabemos. O mais é conjectura, palpite, arrojo intelectual, até mesmo palavras pouco responsáveis, não-sérias.

Bem, pois a Ciência de hoje mostra-nos que a inteligência não sufoca o instinto nem o destrói. Aperfeiçoa-o em parte e alcança soluções que o instinto não vislumbra. Pelo pendor ins­tintivo o rico e o pobre, o poderoso e o humilde, o religioso e o ateu, o mestre e o celerado — todos são levados pelo pendor instintivo a alimentar-se, a dormir, a sonhar, a abrigar-se numa morada, a defender-se de doenças e de ataques, a divertir-se, a praticar sexo, a sublimar sentimentos, a procriar. Alguns conseguem perceber — e outros não — que a violência não surte só como resultado de opção indi­vidual, mas também como produto de contingências sociais como: pendor nato, falta de afeto familiar, carência de vitaminas e de proteínas na alimentação, ausência de ensinamento religioso e moral, inexistência de condições de higiene e saúde, espaço inadequado para moradia, impossibilidade de lazer mínimo organizado, desalento quanto ao emprego, pessimismo no tocante a abertura das estruturas sociais que lhe facultem o desenvolvimento próprio em termos de cultura e de atuação grupal na organização jurídica da sociedade.[3]

Complexidade. Ressaltando a atual complexidade das pesquisas em sociologia, lembra a professora Dra. Maria Antónia Lima, do Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora, que “[...] nem sempre um assassino em série nasce já assassino, nem um indivíduo aparentemente normal está livre de cometer um crime. O impulso perverso, como Edgar Allan Poe o definiu, faz parte da natureza humana e está presente em potência em cada um de nós, escapando totalmente aos poderes da razão. Sem tentar com isso desculpar actos condenáveis, é bom termos consciência que, tal como Robert Bloch sublinhou, no seu cada vez mais actual Psycho, "We're all not quite as sane as we pretend to be". [4]

Essa visão de mais causas — digamos —, de mais fatores reais que determinam as explosões de violência, urbana ou rural, é uma percepção que felizmente se abre à inteligência, mas que é inalcançável pelo só instinto.

Por aí se vê que, importantíssimo embora o instinto, a vida nos pede também — sem prejuízo daquele — o crescimento em perspectiva sempre mais inteligente. O instinto como que parou na história animal; a inte­ligência avança cada vez mais, embora padeça por vezes de retrocessos passageiros. Indo-se ao étimo, temos que o instinto fica parado na excitação corporal, no estímulo material (stingo), ao passo que a inteligência enxerga por dentro e liga relações (intus-legere).[5]

Ora, na composição intrínseca do instinto, e da inteligência que o pode superar, entram os fatores do universo — que são físicos, nas suas bases. Os homens nascemos, vivemos e morremos no espaço-tempo real, que é o da Terra, do nosso sistema solar, da nossa galáxia, do nosso mundo. As leis naturais do espaço-tem­po, segundo a relatividade einsteiniana, atuam no homem. O princípio da entropia existe no homem: lentamente, com anfracturas e estatisticamente, é certo, a natureza marcha inexoravelmente para a diminuição dos despotismos. A diminuição do despotismo, isto é, da violência de uns contra os outros, é processo que ocorre sem destruição das forças sociais. O amaciamento da fricção geral da violência dá-se pela distribuição dos bens gerais da vida entre um número crescente de pessoas. As energias não se extinguem; dispersam-se, expandem-se, aumentam qualitativamente dividindo-se entre os elementos do sistema.

A lei física de Carnot-Clausius revela-nos que a quantidade das energias não diminui. Mas decrescem as suas concentrações — as qualidades. Esta lei aparece necessariamente nos seres vivos todos, incluído o homem: nós todos tendemos, em linha descontinua mas crescente, à participação nas conquistas da ciência, nos benefícios dilatadores da religião, nos anelos de dignidade da moral, nos anseios de belezas da arte, na garantia de todos pelo direito, da co-decisão para estabelecermos a localização e as linhas do poder político, na fruição das utilidades materiais da produção econômica.

As leis do instinto são leis de reflexo mecânico, nas suas origens. As fibrilas das células nervosas são instrumentos de comunicação de estímulos. Os estímulos, embora biologizados pela psique, não perdem as características físicas: eletricidade, magnetismo, núcleos e elétrons compondo átomos combinando-se com peso atômico determinado a formar moléculas etc.

E por isso que ligado ao físico, o instinto é incoercível. O átomo de urânio, sujeito a fissura, explode e desprende energia calorífica intensa. Dá-se o mesmo com o instinto de sobrevivência do cidadão: sob pressão exagerada, explode. A explosão pode ser familiar: brigas, espancamentos, ódios. Pode ser social: furto, roubo, homicídio. O instinto sexual e energia que, bem dirigida, causa prazer, alimenta o afeto, forma o círculo familiar, prove ao bem comum com novas inteligências, novos corações, novas capacidades de criação artística, novos talentos para o avanço científico, novos aplicadores do direito, novos agentes políticos (quiçá, raros gênios de estadista), novos braços e novos cérebros para a produção e para a distribuição de bens materiais. Mas se o instinto sexual é sufocado ou mal usado surgem os atentados violentos ao pudor, estouram os estupros, nascem filhos sem pai conhecido; irrompem as doenças e a degenerescência física e moral.

De modo que seria insensatez — diante da Ciência — pensar que não atuasse no instinto o princípio físico da simetria de Curie, Le Chatellier e Gibbs. Não se pode deixar no esquecimento o princípio físico-matemático da determinação única ("Eindeutigkeit", de Joseph Petzoldt): uma menina de seis anos, largada na rua pelo pai e pela mãe que vão trabalhar, tende a prostituir-se. Um jovem de 15 anos com inclinação genética para o esporte, mesmo depois de ser delinqüente é capaz de reencontrar-se mo­ral, jurídica, econômica e até religiosamente, se lhe derdes por exemplo, oportunidade de lutar boxe (como há anos aconteceu ao famoso Johny Liston nos EEUU). O que faz o homem correto e prestante é, sobretudo, a oportunidade de auto-realização que lhe for propiciado. As exceções são estatisticamente desprezíveis.

Também o princípio físico da inércia atua no instinto. O menor tende a ficar somente no prazer e acostuma-se a droga e a vagabundagem se lhe não instilardes visão religiosa do mundo, percepção da sua dignidade moral, confiança na sua capacidade de produção, convicção pessoal da utilidade geral do seu trabalho, para si e para a sociedade em que ele nasceu. Ao princípio da inércia junta-se o da conservação: o homem egresso da prisão leva consigo o amargor de duros sofrimentos penitenciários. Posto na rua sem um serviço de assistência ao egresso, e sem trabalho garantido, pode delinqüir no dia seguinte ao do seu livramento — como se tem verificado.

O que dissemos dos princípios físicos, temos de afirmar igualmente dos princípios biológicos. Todos os seres humanos somos indistintamente tangidos, no próprio inconsciente vital, pelo princípio da variabilidade, pelo da hereditariedade, pelo principio da seleção natural, pelo princípio da crescente estabilidade. Não se nega que a atuação dessas leis biológicas seja sincrônica. Evidentemente essa simultaneidade de sentidos e de direções complexifica sobremaneira a compreensão do ser humano e o faz a um tempo admirável e respeitabilíssimo. Fácil perceber quão inoportunas são as medidas sociais ditadas pelo simplismo das ideologias. Não se tratam os seres humanos como cobaias, como pretende a mentalidade de ultradireita. Nem eles se podem reduzir a comportados robozinhos, como gostaria que pudesse ser a mentalidade de extrema esquerda, inculta.[6]

Temos então de afastar as concepções simplistas, as visões materialistas, os sonhos racionalistas, as mentalidades despóticas, as manipulações calculistas, o pragmatismo egoísta; o apriorismo, enfim. Nossa atitude filosófica intelectual, não poderia ser senão a de sumo respeito pelos fatos, na sua rigorosa revelação científica.[7] Todo menosprezo pela complexa realidade objetiva, toda arrogância em ditar soluções autoritárias, levarão certamente a erros sem conta e a conseqüências altamente desastrosas. Impõe-se-nos a observação cuidadosa, a paciente inferência de conclusões possíveis e a atilada experimentação das conclusões com os fatos inicialmente observados.

Fora daí, caímos no discurso inútil, resvalamos para o vociferar fátuo, que só conduzem a confusão, aumentando as pressões e aguçando as crises. Clima de violência que começa na psique!

IV. Alguns dados sobre os tipos de violência e suas causas.

Ora, onde há relação social há um ou vários processos sociais de adaptação, por atuação mesmo do princípio da determinação única (de J. Petzoldt), da simetria (de Curie) e da crescente adaptação (de Mach, Avenarius e Pontes de Mi­randa).

A) De modo que a Religião, pela profundidade com que atua na psiqué humana, tem peso 5 de despotismo. Recordemos o que se passou há tempos na Irlanda e o ocorre nos países dominados pelo fundamentalismo islâmico sunita do Talibã. Toda perseguição às religiões, ou pelas religiões, gera explosão social.

B) Mais prepotente que a intolerância religiosa é a violência decorrente da pressão econômica. Quando uma grande empresa despede milhares de trabalhadores para não diminuir o seu lucro, desfere golpe profundo no instinto de conservação dos empregados demitidos. O trabalhador depende do emprego para comer, alimentar a família, pagar a casa, comprar roupa e sapato, ter transporte etc. Ilimitados os ganhos, os já muito ricos ficam cada vez mais ricos, porque tem em mãos as decisões econômicas. As estatísticas do IBGE mostram que esse fenômeno é acompanhado de uma participação decrescente de um número cada vez maior de brasileiros. Ora, por força do princípio da simetria, os empobrecidos por tão aguda desigualdade e cada vez mais cientes dela através de jornais, revistas, televisão e internet, necessariamente ansiarão por mais equilíbrio social entre o árduo da lida diária e o conforto da vida moderna. É fisicamente impossível subjugar essa reação instintiva porque é a agressiva dissimetria econômica que provoca o movimento físico biológico de simetrização. Os grandes desníveis econômicos são, portanto, violência na Economia. Quando as grandes massas não tenham o mínimo vital em termos de alimentação sadia para a família, vestes, habitação com o mínimo de conforto, segurança quanto a atendimento médico-hospitalar-odontológico, direito a emprego, meios para um mínimo tolerável de catársis emocional e sublimação sen­timental. Segundo o relatório publicado pelo Ministério da Justiça em 1980, sobre "Criminalidade e Violência" (p. 264), cerca de 1/3 da população brasileira era carente do essencial, do mínimo vi­tal.

C) A violência política é das mais graves. Por quê? Porque a Política é, por sua própria estrutura natural, o processo social de adaptação com índice mais elevado de quantum despótico; tem peso 7 na escala de Pontes de Miranda.[8] Na Política a adaptação se dá pelo critério do poder dentro do agrupamento humano. O tateamento inconsciente trabalha aí no sentido de legitimar a ocupação do poder, de transformar o exercício do poder em serviço igual para todos os componentes do grupo, de controlar os atos do que estão no exercício do poder dentro do grupo. A Política é um processo adaptativo mais bruto por­que por ela e nela se operam rapidamente grandes transformações na organização interna da vida de certo círculo social. Isso repercute, em profundidade, nos demais segmentos da vida: na Religião, na Moral, no Direito, na Economia, na Arte. Surgem novas orientações, novos rumos, novas idéias, novas movimentações, mudanças no Direito (política jurídica) . Por isso todos, ainda os aparentemente mais indiferentes, estão tensos e empenhados na estruturação do poder e na organização do todo social. É uma violência política a subversão sangrenta, a luta acirrada de clas­ses (com ódio, sem diálogo de igual para igual), a perseguição contra as idéias e contra a livre expressão do pensamento e da criação artística, a proibição de manifestações públicas de discordâncias contra o governo, as turbulências de rua (quebras, bombas, incêndios de veículos, choque com a polícia civil ou militar, a luta física) contra o governo ou a favor do governo; ainda — a tortura, a prisão ilegal, os tribunais de exceção a que se assemelharam muitos foros privilegiados de autoridades públicas (a favor ou con­tra determinado tipo de delito), os genocídios, as eliminações, o afastamento do Povo para que não decida pelo voto sobre os destinos da sua história.

Por causa dos princípios da conservação e da hereditariedade, a violência política deixa rastros de destruição muito duradouros. Os ressentimentos ficam impressos nos indivíduos e, muita vez, transmitem-se de geração em geração. Destroem relevantes reservas religiosas, morais, jurídicas e econômicas. A mais desastrosa forma de violência política é a guerra, como se viu em 1914 e em 1939. São ainda violência política: a corrida armamentista, a guerra psicológica, o clima de guerra fria e de guerra total, transformados em conceitos e em orientação estatal. É o que sentimos todos os dias, em muitas partes do mundo atual: a idéia fixa da guerra como "leitmotiv" de ideologia nacional. Torna-se violência, em alto potencial, alocada num povo ou numa classe poderosa desse povo.

D) A violência jurídica tem subtipos. Um deles é a lei injusta; a lei sem valor adaptativo intrínseco. São assim todas as leis de exceção, as leis draconianas, as leis votadas em proveito de minorias, de castas ou de autoridades públicas. A lei injusta ou opressora atrasa a vida do grupo e deixa estragos na interioridade da pessoa. Um deles é o inconformismo convertido em tensões emocionais fortes, na juventude e nas classes mais sofridas.

Outro subtipo é a aplicação errônea da lei; uma sentença injusta que passa em julgado é mais uma violência. A lei, que existe para todos, mas que não se aplica igualmente para todos, é violência típica. Do mesmo modo é a não-aplicação de boas leis contra a corrupção. Tal o caso, por exemplo, da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 (onde está o conceito de honestidade no artigo 11), a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 (sobre os crimes de responsabilidade de altas autoridades e o seu julgamento), além de outras mais. De sérias conseqüências sociais é a esta violência jurídica.

No plano religioso a injustiça causa arrepios — digamos assim — nas profundezas psicanalíticas das consciências, como clamor que brada aos céus. Na dimensão moral o paroxismo da injustiça jurídica inocula profundo ceticismo e desalento, que chegam a repercutir na Economia e na Política. O desinteresse social gerado pela violência jurídica isola as pessoas, tira-lhes a fé no seu semelhante e o respeito por sua dignidade, ao mesmo tem­po em que, provocando indignação, aciona os mecanismos regressivos do ressentimento aprestado para a vingança. Há um começo de ódio. A mão ameaçadora, o punho cerrado, o ranger de dentes. O egoísmo sobe rapidamente de tom. A agressividade cresce. A temperatura social também sobe, sem tampos e sem válvulas de escape que, por hipótese, se fecham. Com o acirramento dos ânimos, transidos de frustração, já estão todos instintivamente armados por dentro, prontos a brandir, cá fora, as armas que puderem arrumar. E pior: tudo só instinto, recalcado, tresloucado no seu materialismo. Veja-se a que perigo de destruição social se pode chegar: o animal-homem ferido e fechado em si, socialmente encurralado, é energia violentamente sufocada. Da manifestação ruidosa chega logo à explosão.

E) Vamos agora à forma mais comumente conhecida — porque mais aparente de violência, que é violência dos marginais. Deixemos de lado a violência rural, que se dá entre posseiros e proprietários e entre grileiros e posseiros, ou com os proprietários. Vamos à urbana. Os dados impressionam, apesar de as nossas estatísticas serem falhas — como de resto o são todas, nesta matéria, no mundo inteiro.

Rio de Janeiro e a Grande São Paulo. Eis dois grandes centros urbanos ainda parecem ser atualmente as duas metrópoles mais violentas do mundo. De acordo com os dados coligidos por Mário Altenfelder e publicados pelo Ministério da Justiça em 1980, no ano de 1977 ocorreram na Grande São Paulo 250.000 crimes e em 1978 subiram para 340.000. Como o aumento da criminalidade em São Paulo foi de 13,5% em 1978, a conservar-se tal índice teremos 1.465.000 cri­mes em 1990 e 5.198.000 crimes no ano 2.000, isto é, 10 crimes por minuto. Um de cada 4 habitantes da Capital será assaltado uma vez por ano. O Estado terá de ter então 2.397 penitenciárias de 500 reclusos cada uma, com um total de 1.198.500 presos. O preço de custo da construção dessas 2.397 penitenciárias seria da ordem de aproximadamente um trilhão de cruzeiros, hoje. Em 1980 terá havido em São Paulo quase 3.500.000 menores carentes, dos quais cerca de 390.000 são abandonados. Destes, perto de 8.000 já são marginais, autores ou co-autores de furto, assalto, homicídio e estupro.[9]

Segundo essa mesma fonte (p. 331), o menor infrator tinha as seguintes características comuns: a maioria estava entre os 16 e os 17 anos; semi-analfabetos; sem trabalho nem escola (quando muito eram biscateiros); moravam na periferia (em barracos); procediam de famílias desagregadas; seus responsáveis eram pessoas sem qualificação profissional e de baixa renda. Eram impulsivos e emocionalmente desequilibrados. Alvos de subalimentação crônica, eles apresentaram compleição física deficiente. Em grande número foram vítimas de psicoses graves — o que os tornava altamente perigosos. Paradoxalmente, note-se, eram inteligentes. O seu mundo de valores era moral e juridicamente desajustado segundo os padrões da sociedade. Frios e insensíveis, batidos desde cedo pela violência ambiental, eram capazes de verdadeiras atrocidades físicas.

Números globais. Nos dias atuais de 2009, somente em relação à Capital e incluídos também a criminalidade dos adultos, segundo a EBC — Empresa Brasileira de Comunicações, AGÊNCIA BRASIL (primeiro de agosto), contam-se os elementos por nós respigados e postos em ênfase, como segue:[10]

[...Balanço de] estatísticas criminais da Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo mostrou que houve redução da criminalidade no mês de junho deste ano. [...], ....

[...] balanço geral do segundo trimestre de 2009 mostrou [...] aumento [...] no primeiro trimestre [...] 11,0 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, entre abril e junho [...] 11,1 homicídios por 100 mil homicídios. [...]

[...] o número de crimes cresceu no começo deste ano – [...] também em outros estados brasileiros – [...:] um “ciclo de criminalidade” [...] iniciado em 2008 [...] provocado pelo cenário econômico atual, com o aumento do desemprego em São Paulo.

“Cerca de 170 mil pessoas perderam seus postos de trabalho até junho [...]. O aumento da criminalidade [...] também foi notado nas crises de 1998/99, 2001/2002 e 2003. Há, no entanto, uma assimetria: quando o desemprego aumenta, o potencial de criminalidade tende a crescer; quando o desemprego cai, esse potencial tende a declinar, porém de forma mais lenta”, [...].[11]

Criminalidade juvenil entre 1993e 1994. A Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados - SEADE apresenta pesquisa sobre a criminalidade juvenil na cidade de São Paulo. Respigamos dela alguns tópicos.[12]

[...] O universo empírico de investigação compôs-se de uma amostra, estatisticamente representativa, de todos os jovens infratores, na faixa etária de 12 a 18 anos incompletos, sindicados nas 1a. e 3a. Varas Especiais da Infância e da Juventude da Capital, nos anos de 1988 a 1991. A amostra compreendeu 3794 jovens infratores. [...] pôde-se constatar que, em média, cada jovem revela a taxa de 1,4 passagens. [...] total de ocorrências policiais, que é de 5425. [...] Em 1988, ações violentas representavam 37.85%. Em 1991, representaram 33,50%. As infrações violentas compreendem: roubo (15,58%), porte de arma (6,90%), agressão (6,82%), tentativa de roubo (2,29%), homicídio/tentativa (1,28%), tráfico de drogas (0,71%), estupro/tentativa (0,59%), latrocínio (0,30%), seqüestro (0,08%). O roubo é a infração de maior peso na composição da criminalidade violenta juvenil. As ações não-violentas compreendem: furto (23,04%), dirigir sem carteira de habilitação (9,38%), tentativa de furto (6,86%), uso de drogas (4,33%), atos sexuais (1,4%), estelionato/tentativa (1,38%), participação em quadrilha (0,19%) e diversos (17,83%). [...] os padrões de comportamento delinqüente juvenil acompanham padrões na população em geral. [...] perfil-padrão de delinqüente juvenil, o jovem branco, do sexo masculino, 15-18 anos incompletos, natural do Estado de São Paulo, com primeiro grau e não ocupado em alguma atividade. [...] quanto à intervenção da justiça da infância e da adolescência, [...] linhas gerais, [...] as orientações normativas [...] estão sendo, [...], seguidas. Infrações não violentas, [...] [...] advertência, entrega aos pais e lar substituto [...] que não implicam sérias limitações [...] no cumprimento temporário de obrigações rigorosas. [...] entre as infrações não-violentas, 59%,00% mereceu medida leves, 6,30% medidas médias e 3,88% medidas severas. [...] surpreendente foi verificar [...], a probabilidade de uma infração não-violenta vir a merecer uma medida severa é quase idêntica à de uma infração violenta. [...] A presença de jovens no mundo do crime violento é um fato constatado pela pesquisa. Porém, [...] é significativamente menor o número de jovens autores de infração penal violenta face ao número de jovens vítimas de assassinatos [...].

Algumas correlações. Percebe-se na grande maioria dos casos uma relação direta significativa entre a falta de emprego e a prática de ilícitos penais. Mostra-se destarte ser a impunidade uma fonte de destruição social, e que a desigualdade social também o é. Ter um posto de trabalho haverá mesmo de entrar na definição precisa de “direitos humanos”. Do mesmo modo que o direito ao trabalho, o direito à subsistência, à educação, à assistência e ao “ideal”. [13]

Atualmente os incitamentos à prática de ilícitos para todos, com especial vulnerabilidade de crianças e adolescentes, aumentaram. Pense-se no crack (espalhado, acessível até aos de dez anos de idade, muito barato e mais viciador), pense-se no conhecimento maior do alto grau de corrupção dos agentes públicos dos três poderes da República, a mesma coisa quanto à impunidade deles, o induzimento dos adolescentes à participação de seqüestros, ou para atuarem como “olheiros” de traficantes no árduo espaço das favelas.[14] Acrescem, contra todos (incluídos os menores de idade), os fatores de amolecimento na formação da personalidade. Falamos da antiga lei do menor esforço, de certo modo até sábia como lei geral da economia: o máximo resultado como o mínimo de gastos. Anda ela distorcida e largamente reforçada pela lei do prazer — só comer o gostoso, só fazer o deleitável etc. Assim o esforço custa sempre mais e são pouco empregados os recursos humanos para se construir uma vida melhor, coisa que exige ânimo superior ao do exigido pelos prazeres sensoriais.

Características iguais da natureza. Ora, os estudos de biotipologia e psicologia[15] dizem-nos que todos os seres humanos têm marcantes pontos de igualdade, independentemente de raça e de sexo. Fisicamente: corpo semelhante a ocupar espaço mais ou menos igual, mesmo tempo de vida, com peso e forças mais ou menos iguais. Biologicamente: todos nos nutrimos, limpamo-nos, dormimos, temos percepção e sentimento, defendemo-nos de intempéries e de doenças, divertimo-nos, intuímos, pensamos, trabalhamos, educamo-nos, precisamos de compensações íntimas, te­mos atos reflexos semelhantes, instintos parecidos, processo gnosiológico idêntico.

Mais do que isso, atuam em todos os seres humanos, as mesmas energias sociológicas fundamentais, e que são as seguintes: 1) certa parte da nossa psiqué — digamos assim —, dilata-se para além do mundo sensível com lances profundos de crença, abnegação e sacrifício — é a Religião; 2) funciona em nós uma força pela qual nos adaptamos ao ambiente mediante critérios de justiça e dignidade da espécie — é a Moral; 3) atua em todos nós uma propensão a valorizar as coisas pelo que elas em nós provocam de sensação de harmonia e de beleza — é a Arte; 4) não há ninguém que pelo menos de vez em quando não se submeta aos fatos para colhê-los na sua pureza transubjetiva — é o critério do verdadeiro, pertencente à Ciência; 5) nós nos movimentamos no sentido de fixar soluções impessoais, diretas, para a garantia transpolar no relacionamento: todos nos valemos do Direito; 6) também disputamos to­dos alguma influência no estabelecimento ou na mudança da ordem social, e na escolha dos legisladores e administradores, e no controle do acerto dos seus atos — é a Política; 7) não quem não procure bens úteis para satisfazer as suas necessidades ma­teriais, inclusive, em muitos, a busca do supérfluo e a da vaidade natu­ral (Economia).

Poucas diferenças, muitas parecenças. Há variações individuais, por certo. Nas linhas gerais, porém, somos parecidos na maioria das necessidades e das aspirações. Percebe-se, pois, como o princípio físico da simetria (Curie, Gibbs, Le Chatellier), e o princípio da entropia (Carnot-Clausius), na sociologia aparecem com a forma de diminuição gradativa do quantum despótico. Impelem os homens a certo mimetismo natural na participação política e econômica, que são os dois processos sociais de adaptação mais radicalmente instintivos: ter coisas e exercer poderes. Nota-se ainda que o princípio biológico da crescente estabilidade aparece nas relações sociológicas sob a forma mais rica de integração e dilatação, ambas crescentes, dos círculos sociais humanos. Isto impele os seres humanos a uma equilibração mais aperfeiçoada na distribuição geral dos bens de vida. Todos, ricos e pobres, pretos e brancos, homens e mulheres, somos inclinados a participar das mesmas oportunidades de fruição da vida. Pela pró­pria natureza das coisas os atritos e as violências têm que ser evitados mediante plano inteligente de desbastamento gradativo das desigualdades. Mostra-nos a inteligência que todos necessitamos de trabalho, de subsistência material com o mínimo indispensável de assistência à saúde e à higiene, de aprendizado profissional e aculturamento (religioso, moral, artístico e científico) e de dar alguma vazão aos sentimentos por meio do lazer, do esporte, de algum "hobby", de sublimação e de catársis dos nossos sonhos e das nossas frustrações, ou anseios.

Estratégias e ações construtivas. Logo, são necessárias as medidas repressivas de combate à criminalidade, à vagabundagem, ao tóxico, ao alcoolismo. Mas, a repressão pura não resolve o problema social. Adianta pouco à solução geral do problema quando desacompanhada de providências positivas que aumentem o nível de vida de todas as camadas da população. [16]

.

E não se pense que o só incremento de renda familiar seria o bastante. A Economia pesa na vida das pessoas, mas está longe de ser o único fator de ordem ou de desordem social. Todos os indivíduos somos de psiquismo muito semelhante um ao outro. Temos necessidade de segurança, de garantia. Os planos paternalistas não satisfazem. Assim, a garantia de ter onde trabalhar tem de fundar-se na segurança do direito objetivo. O ser humano estaciona mental e emocionalmente quando lhe faltam alimento, teto e vestes. É indispensável o sua segurança jurídica de ter o mínimo vital exigido pela subsistência para não trepidar interiormente de medo e insegurança. Quando ocorre essa implosão, ou ele entra em estado de apatia, e nada produz, e adoece; ou então se torna uma fera capaz das maiores atrocidades: assalto, latrocínio, estupro, saques, incêndios, loucura coletiva, luta, guerra intestina.

A ausência de escola deixa as inteligências aplicarem-se a atos destrutivos, em decorrência do princípio da conservação. Como a Economia se desenvolveu muito nos últimos 100 anos, e foram também bruscas as mudanças políticas (duas guerras, movimento socialista em grande parte da humanidade), a Religião e a Mo­ral — sem o apoio direto de Direito — já não são capazes de conter os atos anti-sociais. Ou nos decidimos pela garantia jurí­dica de escola gratuita, ou corremos o risco seriíssimo de não conseguir pôr cobro à escalada da violência decorrente do número crescente de marginais, cada vez mais bem organizados — que não tiveram lar nem escola onde educar-se e instruir-se para construírem.

O animal ferido é perigoso. O homem ameaçado na sua saúde torna-se sumamente sensível. Se fraca a dose social de Religião e de Moral, ele vai agredir. A repressão sozinha não cura. Cumpre perceber que o marginal não nasce marginal. Todos somos fundamentalmente iguais nas necessidades físicas, psíquicas e sociológicas. E todos temos aproximadamente a mesma capacidade de absorção e de adaptação. O filho de marginais, se amparado e educado em tempo, será igual a qualquer outro cidadão prestante. (Te­mos ainda hoje um bom ator de novelas que foi menino de rua dos mais agressivos. Colhido já à beira do abismo, quem o vê hoje, artista, não imagina o que quase veio a ser — um perigoso mar­ginal).

Podemos verificar mais então que as nossas necessidades pessoais são determinadas por simetrias e por dissimetrias endopsíquicas. Um garotinho de favela não difere biopsicologicamente de um santo, de um príncipe, de um escultor, de um sábio, de um estadista ético, de um alto executivo generoso. O princípio da "determinação única" é o princípio da "seleção", atuam nos grandes números. A pessoa, posta nas mesmas circunstâncias, reagirá semelhantemente. A necessidade que os homens socialmente integrados temos de afeto, de calor humano, de compreensão — tem-na igualmente o menor abandonado, e em grau crítico. O cidadão culto precisa de divertimento com que esqueça certas agruras profissionais e dê vazão ao humor, ou da arte para algum tipo de sublimação. Pois a mesma contingência endopsíquica apanha a mãe solteira, carente, jogada na prostituição desde os 14 anos. O ho­mem de bom nível econômico tem mister de "hobby", ou de esporte, ou de música, ou de leitura. Também o bandido tem necessidade íntima de eficazes compensações. De modo que o ban­dido, a menor desvalida ,o menino abandonado — todos eles são acossados como nós outros, de necessidades físicas, biológicas, psicológicas e sociológicas. E reagem como os outros seres humanos, nas mesmas circunstâncias.

O papel do Estado é instrumental. O mais importante é, portanto, a estrutura social preventiva básica, tanto de ação social enérgica (grandes números) na promoção humana dos socialmente mais fracos como, mui especialmente, a de fazer do Estado o grande instrumento de elevação dos indivíduos. Não haveremos de pretender que o Estado seja — como querem direitistas extremados e esquerdistas extremados — o soberano a que o Povo, dócil, sirva. Isso é regressão histórica e destruição social. [17]O Estado é criado pelo Povo, de quem deriva todo o poder. Todo agente público, de qualquer nível hierárquico e de todos os três poderes, é um servidor da sua Gente, do seu Povo. É disto que se deve honrar, não “orgulhar” do autoritarismo — querer impor-se às pessoas do Povo. Estado é instrumento e não senhor.

V. Remédios jurídicos contra as várias formas de violências

No Brasil de hoje, a despeito do crescimento agigantado da violência marginal nos grandes centros, e sem embargo de violências jurídicas, isto é, de golpes desferidos contra a ordem jurídica, podem ser tomadas medidas administrativas de grande efeito contra a violência. Recordemos as seguintes: 1) apesar do muito a fazer, a ação em prol da habitação é um fator favorável; 2) a extensão de assistência previdenciária a grande número de brasileiros é construtiva (o INAMPS, substituído pelo SUS em 1993) muita vez andava mal porque era constantemente sugado por profissionais e por instituições imorais, e não conta ainda com a fiscalização informal dos órgãos de classe dos trabalhadores; 3) os trabalhos de saneamento básico dos bairros pobres e a melhoria do sistema de transporte coletivo urbano diminuem a ansiedade propícia à agressividade; 4) as fundações de bem-estar do menor têm colaborado ativamente como prevenção da marginalidade dos menores abandonados; 5) em São Paulo houve dois excelentes PLIMEC’s, I e II (Plano de integração do menor na família e na comunidade), em mais de 200 municípios já em 1978 com atendimento a cerca de 230.000 menores e de 430.000 pais, com programas de atendimento ao pré-escolar do nascimento aos seis anos de idade), educação complementar para menores de 6 a 18 anos, educação complementar para pais e atuação indireta de apoio a entidades filantrópicas particulares; 6) não podia ser objeto subestimação o esforço realizado pelos governos com o Mobral — foi um programa muito bom de educação através do rádio e da TV, abrangendo o 1.° e o 2.° grau em cursos supletivos; 7) o plano de abertura política para a volta ao Estado de Direito foi uma medida de profundidade que, com a vigência da Constituição Federal de 1988, restituiu o ânimo de muitas pessoas, e o interesse da sociedade por si própria.

Decerto o índice de corrupção do país é elevado. Atesta-o a Transparência Internacional, com o seu bem organizado “Índice de Percepções da Corrupção”. O cálculo vai de zero a dez; quanto mais o índice é próximo de 0, maior é a corrupção. O Brasil tem problemas de difíceis enfrentamentos nesta matéria[18]. A impunidade é levada ao conhecimento do povo. Influi alargadamente nas concepções das pessoas e, pois, nos graus elevados de violência.#

Preconizam-se como medidas atenuadoras da escala da violência marginal, as seguintes: a) interiorização da atividade indus­trial b) a fixação do trabalhador agrícola no campo; c) atração de mão-de-obra para a agricultura e para a indústria agro-pecuária no Interior, descongestionando as cidades maiores do grande número dos sem-trabalho, dos sem-moradia decente, dos sem-alimentação e assistência higiênica suficiente, dos sem-escola suficiente, dos sem-lazer suficiente; c) alocação de verbas para a criação de grupos comunitários, organizados em âmbito municipal, com estabelecimento de áreas de lazer bem zoneadas, formação da comunidade de quarteirão (para defesa em comum, e para cooperação com a polícia e com a Justiça); d) campanhas do "guarda do seu irmão", para introduzir a idéia comunitária de solidariedade e de segurança em comum; e) integração de paróquias, escolas e sindicatos no fomento das "comunidades de quarteirão"; f) aumentar os centros de triagem de migrantes e de mendigos; g) alocação de verbas para as secre­tarias de promoção social e do trabalho, a fim de se obter canalização racional de mão-de-obra para empresas, serviços, lares, e também para outros pontos de um estado-membro e mesmo do País todo; h) aumento do número de colônias agrícolas para onde se transfiram os presos com suas famílias, com trabalho na lavoura e na pecuária, pertencentes a entidades paraestatais sem fins lucrativos, e com intensa formação religiosa, cultural e esportiva; i) a formação ética do policial, com profundo espírito de solidariedade com o Povo.

Estratégias e ações de profundidade psicanalítica. A validade objetiva dessas soluções parece indiscutível. Existem, entretanto, soluções técnicas mais profícuas. Pelo próprio princípio biológico da crescente estabilidade, corroborado pela psicologia profunda, de Freud e de Jung, e de Piaget, o ser humano precisa em parte de assumir a sua própria sorte. Necessita de realizar a sua individualidade, cuja consciência lhe é dada, também em parte, pela sensação de liberdade. Não basta assim que o Estado tome iniciativas. É preciso que os cidadãos possam continuadamente manter o Estado como seu instrumento da adaptação social. Evita-se destarte o estatalismo de direita (nazifascista) e de esquerda (comunista do tipo norte-coreano, chinês etc.). O Estado tem de existe em uma função da comunidade, e não ser o senhor dela por vontade de um ou de muitos dos agentes públicos. O serviço por eles prestado é serviço público, isto é, para o povo. Público e povo têm o mesmo étimo — publicus e populus. As autoridades e o aparelho público têm de servir ao Povo, e não se transformar em senhor do Povo.

Repetindo — esta superioridade do Povo consiste em ser ele o criador do poder de maneira tal que só o Povo tem o direito subjetivo de revolução (por maioria vencedora). [19]

É aliás o que esta literalmente na Constituição Federal de 1988, art. 1º Parágrafo único. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".[20]

É nesse mesmo sentido que têm caminhando os Povos mais cultos por força mesmos dos princípios da adaptação crescente, da diminuição gradativa do quantum despótico, da integração e dilatação crescentes dos círculos sociais. O sentimento de liberdade avança: embora lentamente, sempre. A consciência de que o importante é o Povo e não o Estado leva à adoção das instituições jurídicas como função social e não como instrumentos de pressão de cima para baixo. Fortalece-se, assim, naturalmente, a exigência de democracia. Além disso, simultaneamente, a simetrização é lei na­tural. Ela está a exigir-nos que cresçamos na construção de mais igualdades. Quadra notar que democracia não tem nada a ver com desordem. Mas a ordem a imperar com energia é a do Direito acertadamente elaborado e corretamente aplicado, e não a disciplina imposta erradamente, seja pela força bruta seja por ameaça velada (violência simbólica).

Tocamos assim a raiz do problema: a problemática do Estado em face do riquíssimo complexo da vida humana com o seu conteúdo físico, biológico e sociológico. Eis uma energia formidável que excede os nossos conhecimentos atuais. Esse poderoso conteúdo como que produz uma catadupa indomada, segundo o instinto. Funciona de outro lado, a modo de uma extraordinária usina de águas aproveitadas, de acordo com o esforço construtivo da inteligência. Aqui todo empenho humano vale a pena, por ser este o maior dos desafios: descobrir a fórmula acertada de intervenção consciente na convivência social entre milhões de indivíduos-problema (cada pessoa é um problema). São problemas a equacionarem-se nos seus reflexos físicos cegos, nas mais alentadas exigências biológicas e nas suas poderosas energias ou “valores”, a saber os do ultra-terreno (Religião), do respeito à dignidade (Moral), do sentido de harmonia (Arte), da procura de proposições verdadeiras (Ciência), da necessidade de garantia e segurança social (Direito), da integração dos jogos do poder ou dominação de variados tipos[21] (Política) e na procura das utilidades materiais (Economia). Fica-se assim diante de uma complexa cachoeira de equações de Einstein, e de coordenadas de Gauss, e de cálculos do brasileiro Pontes de Miranda...

Em síntese nesse tema da mais alta importância surgem-nos pistas ou projetos de reflexão. É que, segundo a sociologia científica brasileira, uma sociedade como a nossa somente encontrará evolução segura, com adaptação duradoura, se avançar por uma estrada de três faixas: a da Democracia, a da Liberdade e das Igualdades.[22] São três faixas a serem percorridas simultaneamente. Mas, cumpre notar, esses três caminhos são três dimensões da vida social. Envolvem, portanto, entre outros componentes energéticos, o componente jurídico. E necessariamente, porque religião, moral, po­lítica, economia e ciência, sem a fixação normativa do Direito, são energias insuficientes para estruturarem as sociedades, e dar-lhes paz com a diminuição máxima possível da violência em suas várias formas.

A estruturação jurídica básica da sociedade dá-se internamente pela Constituição, o instrumento jurídico mais precioso no seio de um Povo digno. Oferece garantia e estabilidade. Bem, pois a Constituição tem de traçar regras de democracia. Democracia é co-decisão e participação de todos na organização do poder através do voto pelo menos indireto (o voto direto não é indispensável a uma acertada organização democrática), e é ainda a fiscalização dos atos de gestão da coisa pública, através do controle enérgico da legalidade. E da própria conveniência das leis. O voto distrital, ligado a categorias econômicas, é dos melhores; sendo assim, pode ser não-obrigatório e acessível ao próprio analfabeto. Pode o indivíduo realizar a sua aspiração insopitável de influir no seu campo social, como é da natureza das coisas. A agressividade pode então diminuir em grau não desprezível, embora não se extinga de todo.

Quanto às liberdades, são fundamentais (essenciais, indispensáveis) as seguintes: liberdade religiosa (inclusive de propaganda a favor da Religião e contra ela); a livre expressão do pensamento, de acordo com lei feita indiretamente por todos e que seja rigorosamente igual na aplicação para todos (ateus, religiosos, ricos, pobres, civis, militares, direitistas, esquerdistas, agentes públicos executivos, parlamentares, juízes; a liberdade de associação e de coalização para fins pacíficos (aí se inclui a liber­dade sindical, tal como a temos nos Estados Unidos, na Inglaterra). Sabe-se que nos países onde os sindicatos são fortes e não cooptados, o Povo todo se desenvolveu, porque a lei da simetrização do corpo social lhe conferiu vigor físico e moral; liberdade de sigilo na correspon­dência e de inviolabilidade do domicilio; liberdade física, não podendo ninguém ser preso senão nos estritos termos da lei e punindo-se energicamente o abuso de autoridade também na forma da lei segundo o devido processo legal (due process of Law).[23]

Finalmente os direitos relativos à promoção individual de to­dos, constitucionalmente garantidos, constitui a faixa das Igualdades crescentes: 1) direito subjetivo a ter um posto de trabalho (com a correspondente obrigação estatal, tendo pois o Estado de oferecer ocupação a quem a pedir, na for­ma da lei — lei feita indiretamente por todos e igual para todos); 2) direito ao complemento do mínimo vital para a subsistência, quando o indivíduo for incapaz para o trabalho ou quando o seu ganho for insuficiente para o mínimo vital da sua família; 3) direito à assistência médico-hospitalar-odontológica gratuita, com sistema fiscalizado por órgãos de classe); 4) direito à escola gratuita (com bolsas de estudo para os indivíduos esforçados de bom talento, enquanto corresponderem; 5) direito à realização de sublimações pessoais essenciais.

Realidade e utopias. A matéria é complexa e vasta. Introduzida, entretanto, a sua constitucionalização, consegue-se duradoura medida jurídica. Não acabará com o crime, com a corrupção, com as tentativas de golpe e de certas rebeliões. Seria utópica a pretensão de uma solução perfeita. Mas a Ciência indica-nos a solução ótima, isto é, para se diminuir ao máximo a violência, reduzindo-a a um mínimo tolerável, e mais facilmente controlável.

Obstáculos e denodo mais generalizado. O grande obstáculo contra esse projeto não é só político. Com um presidente de vocação política, eticamente obstinado em querer acertar com um Brasil melhor, isso é possível, porém, por meio de uma generosa reforma da Constituição Federal, a fim de se atingir aquilo que as pessoas de elevado ideal humano estimariam alcançar, inda que a pouco e pouco.[24] Um grande óbice seria a diretriz econômica com o lema de mentalidade “liberal”, com o velho mote, e enganador: "fortaleça-se o Estado, para depois se atingir a promoção dos seus habitantes". Havemos de discordar de tal orientação, e podemos fazê-lo porque outros já o lograram realizar. Certo estava Roosevelt com o New Deal, afeiçoado à lição de Keynes: emprego para todos, na produção do essencial à vida. Fortes homens e mulheres fortes, e todos e todas encorajados moralmente com um mínimo de legalmente privilegiados. Somente com essa concepção ética vivida dia a dia, e inserida como prioridade da ação estatal, é que se pode pensar em outros projetos e em outras realizações. Foi nessa direção que caminharam outros povos depois de duas conflagrações mundiais do século XX. E puderam avançar cultural e materialmente.

E ainda não se extingue totalmente, assim, a violência. Mas ela tende a baixar quando se dão oportunidades efetivas para todos com a lei igualmente aplicada a todas o todos, quase sem privilégio algum. E a natureza continuará a fluir com a crescente suavidade que é possível ao ser humano, no seu lento movimento no espaço-tempo, superável incessantemente o instinto bruto pelo labor incansável da inteligência, na convivência mais harmônica das liberdades, perseguindo o seu insopitável e difícil destino de construir uma vida melhor para todas e todos.

Santos, 02/09/2009.

Mozar Costa de Oliveira (bacharel em filosofia — Univ. Comillas de Madrid; mestre e doutor em direito — USP).


[1] Este artigo é aproveitado de uma palestra dada para militares na ADESG (Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra) de Santos, Estado de São Paulo em 20.08.81. O tema foi proposto pela coordenação local da ADESG e agora adaptado para este trabalho.

[2] Falamos da ciência positiva, ou seja, do processo cognitivo que parte da (1) análise de fatos colhidos com a ajuda de quantas ciências particulares se pode contar — lógica, matemática, física, biologia, sociologia —, (2) com cuidadosa colheita destes dados avança para alguma proposição geral e, em seguida, (3) controla essa proposição geral com mais fatos. É a ciência com que o homem pode contar: obtida com humildade. É também como se lhe pode afastar o máximo de mitos. Aproximado a esta idéia, ver SCHWARTZMAN, Simon. Os mitos da ciência. In: Ciência, universidade e ideologia – a política do conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar, p. 27-49, 1981.

[3] FRIEDMAN, Lawrence M. Legal culture and social development. Law and Society Review. Stanford: Stanford University, v. 4, n. º 1: 30-44, 1969.

[4] Ver o seu artigo “on line Excelência sem Violência. Está em http: .... etc. com endereço longo. Mais fácil será escrever no Google o título acabado de copiar por nós.

[5] Ver ERNOUT, Alfred; MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots. Paris: Klincksieck, 2001, p. 348-350 e 649-650, respectivamente.

[6] WARAT, Luís Alberto. Educacion, ciencia juridica e interpretacion de la ley. Sus relaciones con el poder politico y la ideologia. In: El derecho y su lenguage. Buenos Aires: Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1976, p. 143-173.

[7] Com alguma aproximação da concepção científica brasileira do direito, ver TEUBNER, Gunther. Substantive and reflexive elements in modern law. In: Law and Society Review. s.l.: s.e., v. 17, nº 2: 239-285, 1983.

[8] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Introdução à sociologia geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 193.

[9] Criminalidade e Violência, p. 327/328.

[11] Sobre períodos anteriores, com abrangência também da maioria adulta, ver

http://www.observatoriodeseguranca.org/dados/dados/agregadas

[12] Coordenação: Dora Feiguin (SEADE), Fanny G.Biderman (SEADE), Sergio Adorno (NEV-USP); pesquisador responsável Renato Sérgio de Lima (SEADE-NEV/USP).

[13] Entre nós e para nós no Brasil, há já muitos anos este tema (de os "direitos humanos" serem os cincos direitos: subsistência, trabalho, educação e assistência e ideal), foi desenvolvido por Pontes de Miranda com as seguintes obras: Os novos direitos do homem. Rio de Janeiro: Alba, 1933; Direito à subsistência e direito ao trabalho. Rio de Janeiro: Alba, s.d; Direito à educação. Rio de Janeiro: Alba, 1933; Anarchismo, communismo, socialismo. Rio de Janeiro: Editores Adersen, s.d.; Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979 (a 3ª parte);

[14] A este respeito ver SEIDMAN, Robert B. Why do people obey the law? The case of corruption in developing countries. In: The American Review of Political Science. s.l.: s.e., 45-68, 1973.

[15] Ver PONTES DE MIRANDA, Democracia, Liberdade e Igualdade — Os Três Caminhos, 2.a ed., p. 464.

[16] HIRSCH, Joachim. Observações teóricas sobre o Estado burguês e sua crise, in A crise do Estado, Nicos Poulantzas organizador. Lisboa, Moraes, 1978.

[17] Ver FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (ver o capítulo final). Porto Alegre: Globo, 1975, p. 733-750.

[18] Na tabela da página 27, ano de 1995, o Brasil tinha 2,7% de nota, igual ao nível da Venezuela e abaixo de México, Argentina, Colômbia e Chile. No ano 2000 foi atribuída ao Brasil a nota 3,9, abaixo da Costa Rica, El Salvador, Chile e Peru.

[19] Ver ARENDT, Hannah. Crises da república. Cap. “Desobediência civil”. São Paulo: Perspectiva, p. 51-90, 1973.

[20] Ver COSTA, Robson Borges. Bons regimes que ajudam a crescer. Revista Pesquisa. São Paulo: FAPESP, nº 70, pág. 82-85 e seg., nov./dez. 2001. Também BOBBIO, Norberto. Existe uma teoria marxista del Estado. Cap. 2 (alternativas a la democracia representativa). Puebla: Universidad Autónoma de Puebla, 1978, p. 33-53; CARDOSO, Fernando Henrique. A questão do Estado no Brasil. In: Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 187-221.

[21] WEBER, Max. Los tipos de dominación. In: Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura, p. 170-241, 1977.

[22] DAHRENDORF, Ralf. Reflexiones sobre la libertad y la igualdad. In: Sociedad y Libertad. Madrid: Tecnos, p. 317-357, 1971.

[23] Em parte sobre o assunto, ver BARCELLONA, Pietro. Un dilema falso: libertad o coacción. In: La Formación del Jurista: Capitalismo Monopolístico y Cultura Jurídica. Madrid: Civita, 1977, p. 133-151.

[24] Ver WEBER, Max. A política como vocação. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, s.d., p. 97-153.

Nenhum comentário: